Remição pelas práticas sociais educativas
- Rafael de Souza Miranda
- 8 de out. de 2022
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Atualizado: 10 de out. de 2022
A remição tem sofrido grandes modificações ao longo dos anos, pois a doutrina e jurisprudência, com grande acerto, têm ampliado e regulamentando o instituto para se adequar ao objetivo de proporcionar a harmônica integração social do sentenciado.
Atento a essa realidade, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 391, de 10 de maio de 2021, estabelecendo procedimentos e diretrizes a serem observados pelo Poder Judiciário para o reconhecimento do direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas em unidades de privação de liberdade. Tais práticas sociais educativas são desdobramentos da remição pelo estudo.
Assim, de acordo com a legislação vigente, hoje temos a remição pelo trabalho e pelo estudo. Pelo estudo, pode ser dividida nas seguintes espécies:
Práticas sociais educativas escolares;
Práticas sociais educativas não-escolares;
Leitura.
Importante consignar que as espécies de remição não são excludentes, ou seja, é perfeitamente possível que o sentenciado acumule todas as espécies de remição, desde que haja compatibilidade de horário. A Res. CNJ nº 391/21 determina que cabe ao juízo competente zelar para que “seja assegurado o registro de presença da pessoa inscrita na prática social educativa, com o respectivo cômputo de carga horária, em caso de ausência motivada por questões de saúde, caso fortuito, força maior e quando a não realização da atividade decorrer de ato injustificado da administração da unidade de privação de liberdade” (art. 7º, inc. II).
Como visto na classificação acima apresentada, as práticas sociais educativas podem ser escolares e não-escolares. A Res. CNJ nº 391/21 se encarregou de definir cada uma delas:
Práticas sociais educativas escolares são aquelas de caráter escolar organizadas formalmente pelos sistemas oficiais de ensino, de competência dos Estados, do Distrito Federal e, no caso do sistema penitenciário federal, da União, que cumprem os requisitos legais de carga horária, matrícula, corpo docente, avaliação e certificação de elevação de escolaridade (art. 2º, parágrafo único, inciso I). De observar que o reconhecimento do direito à remição de pena pela participação em atividades de educação escolar considerará o número de horas correspondente à efetiva participação da pessoa privada de liberdade nas atividades educacionais, independentemente de aproveitamento, exceto, quanto ao último aspecto, quando a pessoa tiver sido autorizada a estudar fora da unidade de privação de liberdade, hipótese em que terá de comprovar, mensalmente, por meio da autoridade educacional competente, a frequência e o aproveitamento escolar (art. 3º). Portanto, em se tratando de atividade realizada dentro da unidade prisional, não é permitido ao juiz exigir comprovação de bom aproveitamento para reconhecer o direito à remição.
Práticas sociais educativas não-escolares são as atividades de socialização e de educação não-escolar, de autoaprendizagem ou de aprendizagem coletiva, assim entendidas aquelas que ampliam as possibilidades de educação para além das disciplinas escolares, tais como as de natureza cultural, esportiva, de capacitação profissional, de saúde, dentre outras, de participação voluntária, integradas ao projeto político-pedagógico da unidade ou do sistema prisional e executadas por iniciativas autônomas, instituições de ensino públicas ou privadas e pessoas e instituições autorizadas ou conveniadas com o poder público para esse fim (art. 2º, parágrafo único, inciso II).
Para o reconhecimento do direito à remição de pena pela participação em práticas sociais educativas não-escolares deve existir um projeto com os seguintes requisitos:
Especificação da modalidade de oferta, se presencial ou a distância;
Indicação de pessoa ou instituição responsável por sua execução e dos educadores ou tutores que acompanharão as atividades desenvolvidas;
Objetivos propostos;
Referenciais teóricos e metodológicos a serem observados;
Carga horária a ser ministrada e conteúdo programático;
Forma de realização dos registros de frequência;
Registro de participação da pessoa privada de liberdade nas atividades realizadas.
A participação nessas práticas sociais educativas (não-escolares) ensejará remição de pena na mesma medida das atividades escolares, considerando-se para o cálculo da carga horária a frequência efetiva da pessoa privada de liberdade nas atividades realizadas.
No contexto das práticas sociais educativas não-escolares se insere a remição pela aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio – Enem ou em exames que certificam a conclusão do ensino fundamental ou médio (Encceja ou outros).
Consoante a resolução, “em caso de a pessoa privada de liberdade não estar vinculada a atividades regulares de ensino no interior da unidade e realizar estudos por conta própria, ou com acompanhamento pedagógico não-escolar, logrando, com isso, obter aprovação nos exames que certificam a conclusão do ensino fundamental ou médio (Encceja ou outros) e aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio – Enem, será considerada como base de cálculo para fins de cômputo das horas visando à remição da pena 50% (cinquenta por cento) da carga horária definida legalmente para cada nível de ensino, fundamental ou médio, no montante de 1.600 (mil e seiscentas) horas para os anos finais do ensino fundamental e 1.200 (mil e duzentas) horas para o ensino médio ou educação profissional técnica de nível médio, conforme o art. 4º da Resolução no 03/2010 do Conselho Nacional de Educação, acrescida de 1/3 (um terço) por conclusão de nível de educação, a fim de se dar plena aplicação ao disposto no art. 126, § 5º, da LEP”.
Melhor compreendendo o cálculo da remição pela aprovação no Enem: a base de cálculo deve corresponder à metade da carga horária definida em lei para o ensino médio, ou seja, 2400 horas divididas por 2, que resulta em 1200 horas. Divide-se a base de cálculo por 12 horas (aplicação da regra prevista no artigo 126 da LEP para a remição pelo estudo), que resulta em 100 dias de remição
Como a prova do ENEM é composta de 5 áreas de conhecimento (1. Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; 2. Ciências Humanas e suas Tecnologias; 3. Ciências da Natureza e suas Tecnologias; 4. Matemática e suas Tecnologias; 5. Redação), o Superior Tribunal de Justiça entende que a aprovação em cada uma delas equivale a 20 dias de remição (total 100 dias). Os julgados a seguir foram enfrentados na vigência da Res. CNJ nº 44/13, que foi expressamente revogada pela atual Res. CNJ nº 391/21, mas perfeitamente aplicáveis atualmente:
1. O art. 126 da Lei de Execução Penal determina que o condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena. 2. Esta Corte Superior de Justiça firmou entendimento e tem admitido a possibilidade de abreviação da reprimenda em razão de atividades que não estejam expressas no texto legal, como resultado de uma interpretação analógica in bonam partem da norma inserta no art. 126 da LEP. De outro lado, a Recomendação n. 44/2013 do CNJ indica aos Tribunais a possibilidade de remição por aprovação nos exames nacionais que certificam a conclusão do ensino fundamental Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) ou médio Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Verifica-se, portanto, que o objetivo deste conjunto de regras acerca da remição da pena por aproveitamento dos estudos é o de incentivar os apenados aos estudos, bem como sua readaptação ao convívio social. 3. Considerando como base de cálculo 50% da carga horária definida legalmente para o ensino médio, ou seja, 1.200 horas, deve-se dividir esse total por doze, encontrando-se o resultado de 100 dias de remição em caso de aprovação em todos os campos de conhecimento do ENEM. Serão devidos, portanto, 20 dias de remição para cada uma das cinco áreas de conhecimento. 4. In casu, como o agravado obteve aprovação integral, ou seja, nas cinco áreas de conhecimento, a remição deve corresponder a 100 dias com os acréscimos legalmente permitidos. Interpretação dos arts. 24, I, e 35 da Lei n. 9.394/1996. Precedentes. 5. Agravo regimental não provido (STJ, AgRg no HC nº 447.375/SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. 04.04.2019). 1. “É cabível a remição pela aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM ainda que o Apenado já tenha concluído o ensino médio anteriormente, pois a aprovação no exame demanda estudos por conta própria mesmo para aqueles que, fora do ambiente carcerário, já possuem o referido grau de ensino” (REsp n. 1854391/DF, relatora Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 22/9/2020, DJe 6/10/2020), ressalvado o acréscimo de 1/3 (um terço) com fundamento no art. 126, § 5º, da Lei de Execução Penal. 2. Não é cabível a remição ficta dos dias em que apenado não trabalhou nem estudou por não lhe ter sido oferecido labor e/ou estudo, uma vez que o entendimento desta Corte é o de que “a suposta omissão estatal não pode ser utilizada como causa a ensejar a concessão ficta de um benefício que depende de um real envolvimento da pessoa do apenado em seu progresso educativo e ressocializador (AgRg no HC n. 434.636/MG, Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, DJe 6/6/2018). 3. Agravo regimental parcialmente provido para determinar que o Juízo das execuções reexamine o pedido de remição do recorrente, nos termos do art. 1º, inciso I, da Recomendação 44/2013/CNJ, considerando a aprovação parcial do ora agravante no Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (STJ, AgRg no RHC 118.912/RO, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, j. 03.11.2020)
E ainda na vigência da revogada Res. CNJ nº 44/13 o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que a carga horária de 1600 horas já corresponde a 50% da carga horária definida em lei. O alerta se justifica porque algumas vozes defendiam que os 50% deveriam incidir sobre as 1600 horas, que levaria à carga horária de 800 horas.
1. Diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça passou a acompanhar a orientação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de ser inadmissível o emprego do writ como sucedâneo de recurso ou revisão criminal, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. 2. A controvérsia diz respeito à remição da pena no patamar de 50% da carga horária definida legalmente para o ensino fundamental, em virtude da aprovação no ENCCEJA. Questiona-se se as 1.200/1.600h dispostas na Recomendação n. 44/2013 do CNJ já equivalem aos 50% da carga horária definida legalmente para cada nível de ensino ou se os 50% incidirão sobre essas 1.200/1.600h. 3. Com o intuito de “fechar esse espaço deixado pelo CNJ” fez-se uso da LDB, na qual consta que a carga anual mínima para o ensino fundamental é de 800 horas, sendo natural que ela seja menor no início e maior no final. Relevante consignar, ademais, que o art. 4º, II, da Res. 03/2010 do CNE, não impede esta interpretação. Pelo contrário, a referida norma menciona que 1600 horas equivalem apenas à duração mínima para os anos finais do Ensino Fundamental. 4. Nessa linha de intelecção, interpretar que as 1.600 horas mencionadas na Recomendação 44/2013 do CNJ correspondem a 50% da carga horária definida é justamente cumprir o dispositivo, porquanto o CNE não estabeleceu 1600 horas anuais como o máximo possível. Essa particular forma de parametrar a interpretação da lei ” é a que mais se aproxima da Constituição Federal, que faz da cidadania e da dignidade da pessoa humana dois de seus fundamentos (incisos II e III do art. 1º). Mais: Constituição que tem por objetivos fundamentais erradicar a marginalização e construir uma sociedade livre, justa e solidária (incisos I e III do art. 3º). Tudo na perspectiva da construção do tipo ideal de sociedade que o preâmbulo de nossa Constituição caracteriza como ‘fraterna’”. (HC 94163, Relator Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma do STF, julgado em 2/12/2008, DJe 22/10/2009 P. 23/10/2009). Sistema penitenciário Brasileiro. Estado de Coisas inconstitucional. ADPF 347 MC / DF – DISTRITO FEDERAL, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016. – A propósito, recorde-se: a norma do art. 126 da LEP, ao possibilitar a abreviação da pena, tem por objetivo a ressocialização do condenado, sendo possível o uso da analogia in bonam partem, que admita o benefício em comento (REsp n. 744.032/SP, Ministro FELIX FISCHER, Quinta Turma, DJe 5/6/2006). – PRECEDENTES DO STJ: AgRg no HC 643.709/SC, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 23/02/2021, DJe 26/02/2021; AgRg no HC 631.550/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 09/02/2021, DJe 11/02/2021; AgRg no HC 533.513/SC, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 19/05/2020, DJe 27/05/2020; HC 541.321/SC, Rel. Ministro LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PE), QUINTA TURMA, julgado em 10/12/2019, DJe 17/12/2019; AgRg no HC 522.090/SC, Rel.Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 10/12/2019, DJe 12/12/2019, entre outros. – Decisões do STF que recomendam a manutenção da diretriz do STJ pelo menos até decisão plenária do STF sobre o tema: RHC 190155 / SC – SANTA CATARINA, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, DJe-241 DIVULG 01/10/2020 PUBLIC 02/10/2020 e RHC 165084 / SC – SANTA CATARINA, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, DJe-105 DIVULG 20/05/2019 PUBLIC 21/05/2019. 5. Assim, a base de cálculo de 50% da carga horária definida legalmente para o ensino fundamental deve ser considerada 1.600 horas, a qual, dividida por doze, resulta em 133 dias de remição em caso de aprovação em todos os campos de conhecimento do ENCCEJA. Serão devidos, portanto, 26 dias de remição para cada uma das cinco áreas de conhecimento. Logo, como o paciente obteve aprovação integral, ou seja, nas cinco áreas de conhecimento, a remição deve corresponder a 133 dias, acrescido de 1/3, que totaliza 177 dias remidos. 6. Não conhecimento do mandamus. Porém, concedida a ordem de ofício para reconhecer o direito do paciente à remição de 133 dias de pena, com o acréscimo de 1/3, totalizando 177 dias, considerando sua aprovação em todas as áreas de conhecimento do ENCCEJA (STJ, HC nº 602.425/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, j. 10.03.2021 – sem grifo no original).
Importante registrar que a remição no caso em tela deve ser acrescida de 1/3 (um terço) por conclusão de nível de educação, a fim de se dar plena aplicação ao disposto no art. 126, § 5º, da LEP. Nada mais natural, pois referido dispositivo legal determina que “o tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de 1/3 (um terço) no caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena, desde que certificada pelo órgão competente do sistema de educação”.
Extremamente feliz a previsão da remição em tais hipóteses. Afinal, para um sentenciado que se encontra em ambiente de cárcere, as dificuldades impostas pelos estudos são maiores que para um estudante de curso regular, pois este é beneficiado pela tutoria de professores e pelo uso de materiais escolares direcionados. O sentenciado que opta por estudar sozinho, com poucos materiais disponíveis e sem acompanhamento, emprega esforços maiores para alcançar seus objetivos, tornando sua conquista digna de aplausos e merecedora de reconhecimento.
Questão que pode trazer dúvidas versa sobre a hipótese de o sentenciado obter mais de uma aprovação no Enem ou Encceja e requerer a remição por cada uma delas. O Superior Tribunal de Justiça manifestou entendimento de que não é possível obter a remição por múltiplas aprovações, pois a realização do mesmo exame não configura evolução, com acréscimo intelectual ao sentenciado, mas mera reiteração da realização de uma prova para abatimento da pena, o que constituiria duplicidade de remição pelo mesmo fato.
1. O agravo regimental deve trazer novos argumentos capazes de alterar o entendimento anteriormente firmado, sob pena de ser mantida a decisão agravada por seus próprios fundamentos. 2. O benefício da remição deve ser aplicado na situação em que o apenado obtém a aprovação no ENCCEJA ou ENEM, haja vista que configura aproveitamento dos estudos realizados durante a execução da pena, conforme dispõem o art. 126 da LEP e a Recomendação n. 44/2013 do CNJ. 3. Consolidou-se nesta Superior Corte entendimento no sentido de que a realização do mesmo exame não demonstra evolução, mas a mera reiteração da realização de uma prova para abatimento de pena, o que, obviamente, constitui concessão em duplicidade do benefício pelo mesmo fato, não restando configurado qualquer acréscimo intelectual (AgRg no HC 592.511/SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 08/09/2020, DJe 15/09/2020). 4 . Agravo regimental não provido (STJ, AgRg no HC nº 620.453/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, j. 23.02.2021 – sem grifo no original).
Referência bibliográfica
MIRANDA, Rafael de Souza. Manual de Execução Penal Teoria e Prática, 5ed, São Paulo: Juspodivm, 2022.
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