Extinção da punibilidade e multa penal
- Rafael de Souza Miranda
- 13 de mar. de 2024
- 5 min de leitura
Ponto extremamente negligenciado pela defesa técnica nos processos de execução penal é a declaração da extinção da punibilidade do sentenciado pela extinção ou cumprimento da pena privativa de liberdade, independentemente do pagamento da multa penal.
Desde o advento da Lei nº 9.268/96, a multa penal passou a ser considerada dívida de valor, sendo impossível sua conversão em privativa de liberdade.
E não poderia ser diferente, na medida que constranger a liberdade de quem é apenado com pena pecuniária significa a aceitação da prisão por dívida, em manifesta afronta ao art. 5º, inc. LXVII, da Constituição da República e, ao art. 7.7, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
E se a multa penal não pode ser convertida em pena privativa de liberdade, sua inadimplência não pode obstar a declaração da extinção da punibilidade.
O Superior Tribunal de Justiça havia pacificado, em sede de recursos repetitivos (Tese 931, j. 26.08.15), o entendimento de que o cumprimento da pena privativa de liberdade – ainda que não tenha sido saldada a pena pecuniária – deve implicar na declaração da extinção da punibilidade, senão, veja-se:
“Nos casos em que haja condenação a pena privativa de liberdade e multa, cumprida a primeira (ou a restritiva de direitos que eventualmente a tenha substituído), o inadimplemento da sanção pecuniária não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.”
Ocorre, todavia, que o mesmo Superior Tribunal de Justiça mudou seu posicionamento. De acordo com a Corte, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no julgamento da ADI nº 3.150/DF no sentido de que a multa tem natureza jurídica de sanção penal e, por essa razão, seu inadimplemento impede a declaração da extinção da punibilidade, mesmo que a pena privativa de liberdade tenha sido integralmente cumprida. Assim, a tese 931 passou a ter a seguinte redação:
Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.
Nada obstante, mais uma vez o Superior Tribunal de Justiça, atendendo aos apelos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo no REsp nº 1.785.383, julgado em 24.11.2021, mudou novamente o teor da tese 931:
Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.
Mas o entendimento ainda continuava causando injustiça com as pessoas economicamente hipossuficientes, visto que, na prática, víamos muitos juízes indeferindo a extinção da punibilidade com o entendimento de que o sentenciado não fez prova da hipossuficiência, exigindo provas de difícil ou impossível produção (provas diabólicas). Nesse panorama, novamente o Superior Tribunal de Justiça revisitou a tese no REsp nº 2.090454/SP e alterou sua redação pela quarta vez, passando a assim dispor:
O inadimplemento da pena de multa, após cumprida a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, não obsta a extinção da punibilidade, ante a alegada hipossuficiência do condenado, salvo se diversamente entender o juiz competente, em decisão suficientemente motivada, que indique concretamente a possibilidade de pagamento da sanção pecuniária.
Note que o atual entendimento é o de que a hipossuficiência do sentenciado que já passou pelo Sistema Carcerário é presumida, bastando uma declaração de pobreza firmada pela pessoa. Essa presunção é relativa, cabendo ao Ministério Público provar o contrário.
Acertado o novo entendimento da Corte, na medida que fez a correta distribuição do ônus da prova, cabendo ao acusador provar a solvência do sentenciado e não o contrário.
Não se pode deixar de ressaltar que a máxima da experiência mostra que para lá da metade da população carcerária é composta por condenados por crimes previstos na Lei de Drogas, cujas penas de multa são extremamente vultosas. Em outras palavras, todas essas pessoas não conseguirão ser inseridas na sociedade se não houver a extinção da punibilidade independentemente do pagamento da multa, ao arrepio do que prevê o artigo 1º da Lei de Execução Penal.
É preciso envidar esforços para propiciar condições para a harmônica integração social dos sentenciados. Do contrário , serão três os caminhos: a) sentenciado é rico e terá sua cidadania resgatada após cumprir a pena privativa de liberdade; b) sentenciado é pobre e só resgatará sua cidadania se voltar a traficar para ter recursos financeiros para saldar a multa penal; c) ficará por anos e anos tratado como um não-cidadão, cerceado do mínimo que uma pessoa pode ter, a cidadania.
Não se pode fechar os olhos a essa realidade, que gera danos irreparáveis na vida dos egressos do sistema prisional, pois dificulta a obtenção de empregos, impede o exercício da capacidade eleitoral ativa e impossibilita a emissão de certidão negativa de antecedentes criminais.
Se há dúvida objetiva sobre a manutenção do caráter penal da multa após a inscrição na dívida ativa, a resposta deve ser buscada nos princípios constitucionais e nos direitos fundamentais. Não há colisão perceptível entre direitos ou princípios, e o único princípio aplicável como vetor interpretativo é a humanidade das penas, como consequência do direito fundamental à integração social do sentenciado, que por sua vez, decorre da dignidade da pessoa humana.
Sob o prisma da integração social, é preciso analisar a questão de forma mais ampla, considerando todo o ciclo de estigmatização social e as invariáveis consequências que dele decorrem.
Ao prorrogar a execução do sentenciado no âmbito penal, reafirma-se um ciclo vicioso, o qual mantém o hipossuficiente à margem da sociedade, levando-o, em regra, a alterar sua autoimagem e desenvolver uma – indesejada – carreira criminal. O indivíduo condenado penalmente, ao receber o status de delinquente, tem consideravelmente limitadas suas possibilidades de ações sociais, bem como seu acesso aos meios tidos como “normais” de levar a vida.
Todos sabem que enquanto o sentenciado não tem sua punibilidade julgada extinta e, por consequência, receber o “nada consta” em sua certidão de antecedentes criminais, terá dificuldade de ter acesso ao mercado de trabalho, pois não possuirá os documentos ordinariamente exigidos. Sem acesso aos meios de trabalho não terá condições de arcar com a pena de multa, até mais, de prover o seu próprio sustento e o de seus dependentes.
Excluído do mercado formal de trabalho, poderá o indivíduo recorrer a três caminhos: a) o trabalho informal; b) o desemprego; ou, por fim c) a prática de condutas tidas como criminosas. Invariavelmente opta-se pela prática delitiva, não apenas por ser a opção mais rentável dentre todas as outras, mas, também, por ser a que melhor corresponde às expectativas sociais geradas pelo seu rótulo. Verifica-se que, ao se condicionar a finalização do processo de execução penal ao pagamento da multa, a manutenção do rótulo negativo atribuído ao sujeito. Cria-se um paradoxo em que, ao invés de coibir a prática indesejada, estar-se-á incentivando.
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